Atestado de Óbito
Manhã fria de Segunda-feira. Um relógio quebrado pendurado na
parede marca 13 horas e 46 minutos. Ao meu redor somente cadeiras vazias e um
silêncio desesperador. De repente a porta abre e uma voz forte me chama:
Antônio Ferreira dos Santos.
Nunca gostei de ir ao médico, estava ali por uma obrigação da
empresa, era uma ordem do patrão. Nesse dia iria saber o resultado dos meus
exames de sangue e urina. Após analisar meu hemograma, o Doutor olhou fixamente
nos meus olhos. Ele ia dizer algo, mas uma enfermeira entrou na sala e
interrompeu:
- Doutor Paulo, hoje só temos problemas aqui. A paciente do
quarto 282 morreu, foi parada cardíaca. E um menino acaba de chegar à
emergência, vítima de bala perdida, o estado é grave. O senhor ficará para
cuidar desse caso?
O Doutor bate na mesa e diz furioso:
- Porra Renata, não aguento mais, há três dias estou
cumprindo plantões aqui nessa merda, preciso descansar também. Não conte comigo
nessa, eu tenho mulher e filhos para cuidar. Fale com o Roberto, ele saberá o
que fazer.
A enfermeira bate a porta e sai correndo. Observando todo
esse descaso médico fiquei profundamente revoltado e perguntei qual era,
afinal, o resultado do meu exame. Nessa hora o celular do médico tocou, ele
atendeu com um semblante de felicidade e disse bem rápido:
- Me espere hoje à tarde naquela mesma praça, perto da
Estação Pinheiros. Te amo Ana, beijos no seu corpo todo.
Estava ficando impaciente com toda a situação no consultório.
Olhei fixamente para um carimbo em cima da mesa e, finalmente, escutei o
resultado da porra do exame. Palavras que pareciam facas afiadas atravessavam o
meu coração naquele momento:
- Seu Antônio, infelizmente, foi detectado através do seu
hemograma uma doença muito rara e num estágio já avançado. Faremos um
tratamento rigoroso a partir de hoje. Mas devo informar que as suas chances de
cura são praticamente nulas e o senhor só tem aproximadamente um mês de vida,
talvez um pouco mais ou um pouco menos. Pode se levantar e ir embora.
Um triste silêncio predominou no consultório. Naquele
instante, ao longo dos meus 58 anos, passaram na minha cabeça flashes dos
momentos mais marcantes da minha vida, como: o nascimento da minha filha, a
morte dos meus pais, o acidente de carro que sobrevivi, minhas paixões da adolescência
e muitos outros momentos que serão enterrados comigo em breve.
Saí do hospital feito um louco, bati a porta, chutei as
cadeiras e desci correndo pela escada. Minha vida não tinha mais nenhum
sentido. É muito triste viver sabendo a data de sua morte e não poder fazer
nada para mudar esse terrível destino.
O mundo escureceu ao meu redor, passei o resto da manhã
andando pela cidade sem rumo. Só pensava em uma única coisa, dar um ponto final
nessa agonia de ter dia marcado para morrer. Às 13 horas e 39 minutos entrei na
Estação Pinheiros de Trem e decidi cometer um suicídio.
O trem estava vindo, comecei a tremer e chorar. De repente,
uma moça se aproximou de mim e disse:
- Senhor, está se sentindo bem? Quer ir ao médico? É perigoso
o senhor passar mal e morrer dentro do trem.
Ela disse a palavra médico. É incrível como a vida é tão
irônica. Olhei nos olhos dela e disse que já tinha o meu Atestado de óbito, que
já estava morto desde manhã por causa de um médico. A moça ficou confusa e se
afastou.
Exatamente às 13 horas e 46 minutos pulei nos trilhos. Escutei
as pessoas gritando e o mais doloroso foi escutar a voz da minha filha que, por
coincidência, estava na estação também:
- Pai, pai, não faça isso! Nãoooo!
Comecei a sentir os ferros cortando violentamente os meus pés
e em seguida senti meu corpo sendo dilacerado rapidamente pelos vagões. Minha
cabeça foi esmagada e os miolos se espalharam pelos trilhos. O sangue espirrou
nas pessoas que estavam na plataforma e meu braço ficou pendurado na frente do
trem. Como fundo musical dessa cena horrorosa ficaram os gritos e o choro da
minha filha.
Doutor Paulo, após almoçar e sem demonstrar preocupação com
seus pacientes, sai do hospital e vai ao encontro de Ana, sua amante. Mas o que
ele não sabe é que cometeu o maior erro de sua vida nessa manhã. Ele havia
trocado o resultado do exame de sangue de Antônio, que estava normal e tinha
uma longa vida, pelo exame de Antônia, que estava prestes a morrer.
Um erro fatal que custou uma vida nos trilhos enferrujados da
Estação Pinheiros de Trem.
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